Por Sebastião Pereira do Nascimento – Consultor ambiental, filósofo e escritor. Autor de vários trabalhos científicos; coautor do livro “Vertebrados Terrestres de Roraima”; membro do corpo editorial da revista científica Biologia Geral e Experimental.
Historicamente, o Brasil sempre pagou muito caro por custear com dinheiro público ou abrir mão de receber o total dos tributos devidos em prol de grandes empreendimentos que têm em suas ações impactos sobre o meio ambiente e/ou sobre o contexto social. Algo que vem desde o Brasil Colônia, com renúncias fiscais ou subsídios, como no caso da cana-de-açúcar (da segunda metade do século XVI à primeira metade do XVIII) e mais tarde a produção do café (do início do século XIX ao início do século XX). Dos prejuízos marcantes nessas fases, foi o enorme impacto ambiental que levou a Mata Atlântica à condição de fragmentos florestais e, ainda mais hediondo, por mais de 300 anos, a mais terrível degradação humana: a escravidão. Isso tudo com a proteção e as benesses do Estado.
Outros malfadados eventos recheados de benefícios que causaram grandes prejuízos ao país foram (dentre muitos outros) os megas projetos agroindustriais: Fordlândia e Jarí. O primeiro, no estado do Pará, idealizado pelo estadunidense Henry Ford, em 1928, que destruiu milhares de hectares de floresta tropical para o monocultivo de seringueiras (Hevea brasiliensis), que em poucos anos foi à falência, deixando incalculáveis prejuízos ambientais e socioeconômicos ao país.
O segundo, durante a década de 1960, quando o governo da ditadura militar cedeu um imenso latifúndio em plena floresta amazônica (entre o Pará e o Amapá), ao magnata estadunidense Daniel Ludwig, o qual tinha plano de destruir 1 milhão de ha de floresta para o plantio de uma planta asiática (Gmelina sp) para produção de celulose. Anos depois, o projeto sucumbiu, deixando de herança ao Brasil enormes estragos socioeconômicos e ambientais, numa perfeita combinação de privatizar o lucro e socializar o prejuízo.
Obstinadamente, na esteira desses fatos históricos — a pretexto de incentivar a economia, em detrimento da agricultura familiar e de outros setores produtivos —, o Brasil perpétua sua política de privilégios (por meio de subsídios e isenção fiscal), a empreendimentos insustentáveis como, por exemplo, o agronegócio que, ao estilo dos eventos passados, vem causando danos ambientais, conflitos de terra, trabalho análogo à escravidão, concentração de renda e até as mesmas concupiscências e contradições, quando seus defensores, a fim de confundir a opinião pública, insinuam prosperidade a todos, se apropriando do “boom” do agronegócio, além de não abrir mão dos subsídios e da isenção fiscal.
Sobre esses benefícios ao agronegócio, para se ter uma ideia de quanto o país vem perdendo com a renúncia fiscal, em 2023, as grandes monoculturas junto às agroindústrias deixaram de pagar R$ 59.7 bilhões em impostos. E, para 2024, segundo estimativa da Receita Federal, a projeção é ainda maior, sendo que só a desoneração tributária dos agrotóxicos totalizará R$ 6,3 bilhões. No que pese a queda dessa receita, a isenção fiscal traz ainda amarrada no seu propósito originário, o estímulo à maior aquisição e ao uso intensivo de pesticidas.
Guilherme Franco Netto, coordenador do Grupo Temático Saúde e Ambiente da Abrasco e pesquisador da Fiocruz, adiciona que o valor de isenção fiscal mostra uma contradição entre a Constituição Federal e a realidade brasileira. Pois, “… ao mesmo tempo em que existe uma preocupação constitucional com o meio ambiente e à saúde integral da população, existem medidas que agem a favor do interesse econômico de grupos que controlam parte do mercado [agroquímico], o qual obtém uma isenção fiscal quase que integral, sendo que o imposto em que mais incide a isenção é sobre ICMS, ou seja, uma fonte importante de arrecadação dos estados”, que poderia ser aplicado, por exemplo, na saúde e no bem social da população.
Aliás, como bem situado numa ação judicial impetrada pelo Partido Socialista e Liberdade (PSOL), esses benefícios fiscais concedidos pelo Estado ao agronegócio não teriam sustentação quando se compara as questões de essencialidade e capacidade contributiva, pelo fato de as corporações beneficiadas com a isenção fiscal serem de grande porte e terem ampla capacidade de arcar com a carga tributária regular. Esse argumento dialoga com o parecer apresentado em 2017 pela então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, em resposta à mesma ação impetrada pelo PSOL. Na época, ao considerar como procedente o pedido da legenda, ela afirmou que “o incentivo fiscal endereçado aos agrotóxicos traduz prática contrária aos ditames constitucionais de proteção ao meio ambiente e à saúde, sobretudo dos trabalhadores”.
Na mesma matéria, a procuradora-geral diz: “Os agrotóxicos, a despeito de permitirem, na maioria das situações de uso, a elevação da produção agrícola, não se afiguram essenciais para fins de seletividade tributária; mormente considerando a sua intrínseca nocividade à vida saudável e o seu elevado potencial para a eclosão de danos ambientais.”
A propósito da escalada dos agrotóxicos no Brasil, a contar de 2016, setores do agronegócio, em conluio com as indústrias agroquímicas e parlamentares da chamada “bancada ruralista”, fazem forte pressão no sentido de o Congresso e o Governo alterarem leis, eliminarem regras e afrouxar medidas de controle, liberação e uso de venenos agrícolas em todo o território nacional.
Desde então, o país tem batido sucessivos recordes de novos registros e uso massivo de agrotóxicos, inclusive com a utilização de produtos altamente prejudiciais à saúde humana e ao meio ambiente, muitos deles banidos em outros países e vendidos ilegalmente no Brasil. Isso resulta no que dizem os setores especializados: que a legislação permissiva no Brasil torna o país a mina de ouro das indústrias agroquímicas da Europa, onde as grandes fabricantes encontram um dos seus principais mercados, já que conseguem comercializar produtos proibidos na Europa, faturando alto com a venda aqui no Brasil.
Segundo a FAO (agência especializada da ONU), atualmente o Brasil vem usando mais de 800 mil toneladas/ano de substâncias tóxicas na agricultura, o que equivale a 22% do volume usado em todo o mundo. A maior parte desses produtos é aplicada no cultivo de commodities. Áreas de soja, milho, algodão e cana-de-açúcar, as quais recebem cerca de 84% dos agrotóxicos. Enquanto as pequenas propriedades onde se planta a base alimentar do país representam 1,6% do total.
Portanto, a monocultura em larga escala, pela característica de alterar o ambiente natural e colocar juntas plantas de uma mesma espécie em uma área extensa, favorece a reprodução de certos organismos, os quais, na ausência de competidores naturais, vêm a constituir numerosas populações de pragas (insetos, bactérias, fungos, ervas daninhas, etc.). Essas flutuações de pragas passam a ser frequentes, com repercussão em todo o agroecossistema e, por extensão, atingem também lavouras vizinhas, trazendo problemas para a produção orgânica ou para plantações domésticas (palmares) e, claro, para os ambientes naturais em volta. Em última saída, os agricultores recorrem aos produtos químicos, reduzindo ainda mais a estabilidade do sistema, fazendo com que novas erupções de pragas voltem a ocorrer mais resistentes. O resultado é mais agrotóxicos de alta potência.
Em decorrência disso, o Instituto Nacional do Câncer (Inca) alerta que os agrotóxicos vêm cada vez mais comprometendo a saúde da população brasileira, porém, não só as pessoas que consumem os produtos “envenenados”, mas também os trabalhadores que exercem atividades diretamente dentro da produção ou comunidades circunvizinhas às áreas de grandes monoculturas.
O Inca considera um número muito assustador, sobretudo quando se trata de produtos com princípios ativos altamente cancerígenos, que deixam resíduos nos alimentos consumidos pela população. No caso dos produtos vegetais, em alguns casos, o pesticida fica apenas na superfície do produto, podendo ser eliminado em uma lavagem. Em outras situações, ele age dentro do organismo da planta e dos frutos, e não é possível eliminar 100% esse resíduo — quanto a isso, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) considera que 25% dos alimentos de origem vegetal consumidos no Brasil têm resíduos de agrotóxicos acima do permitido, inclusive venenos sem autorização dos órgãos de controle.
Além de cancerígenos, estudos apontam que muitos desses produtos químicos são causadores de outros agravos patológicos, como diabete, hipertensão, doenças cardiovasculares, distúrbios neurológicos e hormonais, obesidade, etc. Alguns apresentam também princípios ativos teratogênicos: agentes que causam anomalias congênitas, tanto nos humanos quanto em outras espécies animais. Contudo, apesar de a legislação proibir o uso de alguns desses agrotóxicos potencialmente nocivos, o Inca ressalta que existe no país o uso camuflado desses produtos com maior toxicidade, para os quais não existe limite seguro de exposição. Quando alguém entra em contato, já está em risco. Não há como estabelecer o limite.
Soma-se a isso a contaminação dos ecossistemas brasileiros, que vem promovendo alterações em muitas espécies da fauna, colocando-as em risco de extinção e afetando o equilíbrio da cadeia ecológica com a perda da biodiversidade. Por exemplo, a mortalidade ou anomalia genética de espécies não-alvo, como as abelhas, que, dependendo do ecossistema, são responsáveis por até 90% da polinização das plantas angiospermas. Vários estudos sobre o assunto (e.g. desenvolvidos pela USP, UNESP, PUCRS, entre outras) apontam que os principais causadores desse extermínio das abelhas são os venenos, fipronil (suspenso no Brasil a partir de 2023), sulfoxaflor e clorpirifós que, mesmo proibidos em outros países, seguem sendo usados massivamente no Brasil, assim como o acefato e a atrazina, também banidos na Europa por causar doenças humanas e graves problemas ambientais.
Na região do pantanal, estudo como de Vicente e Guedes (Vicente, E.C. & Guedes, N.M.R. 2021. Organophosphate poising of Hyacinth macaws in the Southern Pantanal, Brazil. Scientific Reports) mostra que, mesmo distante das áreas mais degradadas pela monocultura, as araras-azuis-do-pantanal são atingidas pelos resíduos químicos deixados pelos organofosforados, assim também como as antas. Mamíferos silvestres de grande importância para o equilíbrio do ecossistema pantaneiro. Ambas as espécies são bastante afetadas pela dispersão aérea desses produtos. O mesmo estudo indica que os compostos organofosforados (amplamente utilizados na plantação agrícola como inseticidas) provocam diferentes manifestações toxicológicas, deixando graves sequelas no sistema nervoso central e degeneração de células musculares, comprometendo sobretudo a musculatura respiratória dos animais, incluindo os humanos.
Diante desse quadro de desequilíbrio, o melhor caminho do agronegócio para fugir do excesso de agroquímicos, como dizia o criador do termo “agrotóxico” no Brasil, o agrônomo e professor Adilson Paschoal (Esalq/Piracicaba), “… é preciso tentar equilibrar a natureza e mudar o modelo tradicional de cultivar a monocultura em grande extensão de terra, passando a adotar manejo integrado de pragas, patógenos e invasoras (em que o controle químico seja o último recurso). Fazer controle biológico, rotação de culturas, culturas intercaladas e enriquecedoras do solo e variedades resistentes e tolerantes, cuja produtividade pode ser aumentada não apenas por melhoramento genético, mas também por manejo adequado do solo, seria o necessário.” Afinal, como os eventos do passado que tiveram seu apogeu e queda, o agronegócio também tem seu prazo de validade, sobretudo pelo fato de não levar em conta as melhores práticas de lidar com o meio ambiente. Para além disso, é de conhecimento amplo que, ao tratarmos a natureza com desprezo e desleixo, cedo ou tarde ela colapsa e, então, intempestivamente, ela se levanta contra todos.