Por Sebastião Pereira do Nascimento*
Solitário, cabisbaixo e com passos vacilantes, o sujeito segue rumo à estação. Ao longo da rua nevada e deserta, através das janelas envidraçadas dos velhos casarões, ele via as lareiras e suas chamas dançantes, evidenciando o quão frio estava aquela noite de inverno. E, enquanto caminha sob uma espessa bruma, o sujeito imprime no semblante a falta de ânimo e um profundo vazio existencial.
Para o sujeito, não há mais nada que valha a pena. Suas emoções, que normalmente fluiam da felicidade à frustração, já não oscilam em resposta aos estímulos projetados por suas próprias experiências. Agora, sob uma profunda dor sem repouso, ele vive aprisionado num verdadeiro estado de ostracismo, quando outrora era sociável, agora solitário; outrora extrovertido, agora circunspecto; outrora satisfeito, agora lastimoso; outrora comunicativo, agora silencioso; outrora acolhedor, agora padecente; outrora festivo, agora melancólico…
Diante dessas dores existenciais, o sujeito se dirige à estação mais próxima com o intuito de embarcar no trem — o último trem, um para um mundo inteligível. E, na medida em que segue pela rua fria e deserta, pouco a pouco supera o medo que por muito tempo o fez procrastinar o tão essencial embarque. De repente, num cruzamento, o sujeito estanca, olha para um lado e outro, mete a mão por baixo do casaco, puxa o relógio do bolso e vê as horas: faltam poucos minutos para meia-noite. Sabendo que o trem é pontual, o sujeito acelera os passos em direção à estação.
Na plataforma, o sujeito se desfaz do fardo e, sem passagem e bagagem, embarca no trem. Assim como ele, outras pessoas também embarcaram no mesmo vagão. Todas em busca de extirpar seus carmas. Sendo que uma viagem de trem para um mundo inteligível, ainda que cheia de embarques e desembarques, encontros e desencontros, regressos e despedidas, sempre traz mudanças profundas e repletas de boas intenções que não apenas impõem um propósito à vida, mas também proporcionam o vigor necessário para enfrentar as contrariedades do tempo. Então, o sujeito, acomodado num imenso vagão do tempo, deixa fluir livremente seu pensamento de modo a rastrear suas dores existenciais, passando a suprimi-las do corpo e da alma. Logo, abre-se espaço para profundas reflexões em favor de uma nova perspectiva de vida.
No entanto, considerando a ideia de que cada indivíduo é responsável por criar seus próprios propósitos. Ali, num instante de retrocesso, o sujeito pensa também que poderia ter continuado no seu mundo de ostracismo e, sob o frio tempestuoso, ter ficado a ermo pelas ruas sombrias ou desalojado num coreto vazio de uma praça central, ou quando muito, recluso numa modesta alcova infestada de ratos, a única a lhe oferecer um pouco de calidez.
Não! Não! Não! Nenhuma dessas situações seria suportável para o sujeito, pois estaria somando o peso do fardo e canalizando suas angústias. Coisas que acabariam fazendo-o continuar refém de suas escolhas predatórias, diante de uma progressiva fraqueza e sensação de abandono. Portanto, ainda que sem passagem e bagagem, o sujeito optou por seguir viagem em um trem que o levaria para o mundo inteligível, bem distante dos estímulos estressores provenientes do coletivo de monstros: vândalos, malfeitores, corruptos, bárbaros, etc.
Naquele dia de profunda melancolia, o sujeito tinha como única alternativa viável a fuga, ou seja, era preciso explorar novas rotas, fugir de um mundo insensível, sem regra e construído por aqueles que apreciam o verdadeiro caos. Um mundo material, composto de objetos e fenômenos que revelam a realidade de quem acessa uma vida destrutiva, preenchida de coisas nocivas que massageiam o superego e excitam a vaidade. Nesse mundo há também pessoas sem alma, cuja boca voraz da infâmia sorveu tudo de uma só vez, deixando-o um corpo vazio desprovido de sentimentos e lucidez.
Portanto, ainda que dissecado de suas verdadeiras emoções, o sujeito optou por fugir desse mundo estéril e disforme, com intuito de alcançar outro mundo. O mundo das ideias, onde residem as essências das coisas salutares, o qual só pode ser acessado por aqueles que agem pela razão e pela contemplação. Um mundo racional que seria a fonte inesgotável do conhecimento verdadeiro. Assim, o trem que corre sobre o trilho do tempo é a maneira possível de levar o sujeito para uma viagem reparadora.
No trem, o sujeito começa a repaginar sua vida e, ainda que tarde, começa a destruir a masmorra que aprisiona a sua alma. Ali mesmo, ele passa a perceber que de nada vale a pessoa ter uma luz brilhante, se não iluminar incondicionalmente o caminho do outro. Não basta ser gente, não basta existir. É preciso ser lúcido, permissivo, condescendente…
E aprofundando-se no próprio pensamento, o sujeito assente que realmente é preciso se desfazer de suas aflições para ter acesso a um novo mundo. Um mundo reflexivo capaz de fazê-lo se redimir e se distanciar do mundo bruto cheio de infortúnios, maldades, violências e tantas outras coisas que sempre o importunam, mas que nunca teve coragem de se desvencilhar delas.
Em vista disso, enquanto o trem segue seu destino, o sujeito se abdica de tudo aquilo que faz dele um sujeito atormentado. Ele precisa desterrar suas fraquezas, suas vontades e seus desejos avassaladores. Ele precisa assumir suas imperfeições para se abastecer das coisas do mundo inteligível. De um mundo equilibrado e heterogêneo.
Assim, juntando os cacos e se redescobrindo como humano, pela primeira vez o sujeito conseguiu dormir não apenas para descansar, mas também para sonhar. Deixando de ser o reflexo de seu próprio pesadelo. O sujeito também aprende que é preciso amar para ser amado. Além do mais, ele toma consciência de que o convívio com o próximo não é só um estado de relação, é sobretudo um estado de espírito, pois ele renova as emoções e faz renascer a esperança (e a confiança) em si e no outro. Diante dessas ressignificações, que tratam de dar um novo sentido à vida, o sujeito agora é capaz de aquietar sua alma, sem, contudo, contrair dívidas com o corpo.
Logo, quando você sentir sua alma enrijecida; quando se sentir inábil para executar as virtudes; quando sentir incapaz de fazer novas construções; quando sentir que suas realizações são feitas à custa de suborno; quando sentir que o amor ao dinheiro e ao sucesso estiver lhe deixando cego; quando sentir que aquilo que antes lhe preenchia já não faz sentido, saiba fazer uma pausa. Faça um esforço e vá à próxima estação, embarque no trem da vida, sobretudo no trem inteligível, o qual nos leva ao mundo da reflexão. Ao mundo das ideias. Acomode-se e deixe fluir livremente seu pensamento; acerte seu juízo pelo relógio do tempo e veja pela janela do trem os lírios do campo.
*Filósofo, escritor e consultor ambiental. Autor de diversos artigos científicos e livros, dentre eles “Sonhador do absoluto” e “Recado aos humanos”. Membro editorial da revista “Biologia Geral e Experimental”.