Por Sebastião Pereira do Nascimento
No passado distante, surge uma história envolta em grande mistério, repassada de geração em geração, que acabou por integrar o imaginário de um povo habitante de uma certa região do lavrado. Essa narrativa foi construída sobre a imagem de uma criatura conhecida como “chocalheiro”. Trata-se de mais uma das muitas histórias enigmáticas do lavrado — ecossistema regional em constante reconfiguração, seja sob o aspecto geoambiental, seja no imaginário popular.
É nesse cenário de mistério que se passa o filme O Chocalheiro, um curta-metragem de 15 minutos lançado neste domingo (20). É o primeiro projeto audiovisual produzido pelo Instituto AICHAN, com apoio da Lei Paulo Gustavo na categoria “Novos Realizadores” e coprodução da Platô Filmes. A produção apresenta uma narrativa enigmática, construída a partir da memória coletiva de uma comunidade enraizada no lavrado, mais precisamente no município de Alto Alegre.
Embora restrita àquela região, a história do chocalheiro tem um perigo imaginário profundo e devastador, o que dificulta sua narrativa plena. Com o tempo, porém, essa vasta mitologia pode ser inteiramente desvendada, tornando-se parte da história regional ou mesmo ganhando reconhecimento mais amplo. Como resume Leonardo Brandão, um dos diretores: “Um dos objetivos do filme é não deixar a história morrer, porque o chocalheiro tem que estar no mesmo patamar da mula-sem-cabeça, do curupira e de outros nomes do folclore brasileiro.”
Baseado em roteiro inspirado na lenda do chocalheiro, o filme expressa um trabalho “artesanal” que se realiza sobre a matéria-prima da experiência, tendo como modelo as lendas locais. Vanessa Brandão, que também dirige o filme ao lado de Leonardo Brandão, afirma: “Realizar esse primeiro curta de ficção é uma conquista inenarrável.” Segundo ela, fazer cinema independente é desafiador, mas extremamente gratificante.
A história, inspirada nas memórias de seu avô, já falecido, carrega marcas profundas da relação com a natureza e da construção narrativa da obra. “Dirigir esse curta-metragem é uma grande satisfação, por ser inspirado em uma história familiar. Sinto que o filme é uma salvaguarda de memória sobre uma entidade do lavrado específica da região, que permeia até hoje o imaginário coletivo e nos ajuda a refletir sobre o mundo visível e invisível com o qual precisamos conviver”, acrescenta.
Enquanto constituinte do imaginário popular, o filme retrata com fidelidade elementos associados ao chocalheiro como figura simbólica e expressão da natureza humana. A trama permite reviver o passado ao recontar a história no presente. Cristiane Brandão, que interpreta Joaquina, comenta: “O filme foi uma oportunidade de encenar histórias contadas pelos meus avós e tios sobre o temido chocalheiro. Ao mesmo tempo, rememorar a infância na fazenda que serviu de locação.
Foram três dias de filmagem sob sol e chuva, com cenas emocionantes. Atuar foi algo diferente de tudo que já fiz. Não gosto muito das câmeras, sou discreta, mas me senti muito à vontade. Minha queridinha avó, Joaquina, era uma mulher forte do Norte do Brasil. Então, foi um trabalho que fiz com carinho e muito empenho.”
A história se desenrola na Fazenda Nova Cruz, onde Onildo vive com a esposa Joaquina e os filhos, Domingos e Sebastião. Cercados pela vastidão do lavrado e pelas histórias que rondam a mata vizinha, a família convive com o temor ancestral do chocalheiro — entidade que perambula pela mata do Boqueirão do Cujubim fazendo soar seus sinistros chocalhos. Após um conflito com o pai, Domingos foge para a mata, desencadeando uma busca desesperada de Onildo, que acaba por se deparar com o inexplicável. A partir desse encontro, a vida da família muda radicalmente, marcada pelo peso da culpa, pactos silenciosos com a natureza e a força dos encantados.
No contexto regional, O Chocalheiro aborda a tradição oral e a relação entre a produção audiovisual e o contexto cultural, demonstrando também o potencial do cinema como expressão e instrumento de transformação social. Felipe Medeiros, ator que interpreta Onildo, questiona: “A crítica roraimense dá muito valor às coisas de fora… Primeiro é preciso valorizar as coisas da gente para gostar das coisas de fora… Em Roraima, resgatar a história do chocalheiro é muito importante. O que leva a valorizar as nossas coisas.” Para ele, “nada é só arte por arte, portanto, vejo o chocalheiro como um ente protetor ou como uma crítica poderosa.”
O Chocalheiro se inspira nos filmes sobre lendas, especialmente da Amazônia. A narrativa brinca com metáforas sobre o invisível, misturando elementos de aventura e horror a partir do olhar das crianças, enquanto examina a relação entre pais e filhos. Trata-se de uma fábula sombria sobre a relação humana com o desconhecido, o peso da culpa e a força dos mitos do imaginário popular. Em vários momentos, a trama insinua a presença de um monstro que nunca se mostra por completo, mas que permanece como ameaça constante.
Apesar de o filme ter como núcleo uma família, a criatura é um dos elementos centrais do enredo. Com poucos minutos em cena, o chocalheiro aparece sempre como presságio de morte. O suspense é mantido por meio da ambientação e da tensão crescente, provocando no espectador a sensação de que algo terrível está sempre à espreita.
A equipe técnica é composta por Luiz Fernando Pires, Leonardo Brandão, Vanessa Brandão e Cristiane Brandão (roteiro); Yare Perdomo (fotografia, montagem, edição, finalização e edição de som); Donara Aguiar (direção de arte); e Kaylon Monteiro (som direto). A trilha sonora é da banda Ditambah, com letra de Rodrigo Mebs.
O elenco reúne majoritariamente atores estreantes: Luiz Fernando (chocalheiro), João Paixão Mebs (Domingos), Luigi Brandão (Sebastião) e Cristiane Brandão (Joaquina). Felipe Medeiros, com passagens por Bramance (Alex Pizano) e Fuga (Aldenor Pimentel), interpreta Onildo. A finalização contou com colaboração criativa de Thiago Bríglia.